terça-feira, 11 de novembro de 2008

Contra a imprensa tendenciosa!




O PHAROL, Itajaí, 21/01/1910 – p. 02, c.03.

“Mãe desnaturada”

“Domingo último, 16 do corrente, nos fundos do quintal do Hotel Brazil, desta cidade, foi encontrada uma creança de sexo feminino e de cor branca, enrolada em uma saia de baeta azul. Chegando ao conhecimento da autoridade policial, esta mandou proceder o acto de corpo de delito e exame de sanidade, verificando os peritos ser um recem-nascido e ainda com vida, não havendo sinal de tentativa de infantecidio; porem manifesto abandono, sujeito as prezas dos suinos e bicos de urubus que alli naquelle local permaneciam, mas que não lhe haviam tocado.

Constando achar-se no alludido hotel uma passageira de nome Cecília Reckenzki, criada, vinda de Florianópolis, no paquete Júpiter com destino a Blumenau, de onde é natural, e havendo suspeita de ter a mesma descida as escadas durante a noite, a autoridade e o Sr. Dr. Aurelio Castilho subiram ao compartimento, onde se achava a mulher, verificando indícios de maternidade recente, embora na consentisse examinar as gandulas. Feitas as perguntas pela autoridade e testemunhas, negou ser a mãe daquella creança. A autoridade fez conduzi-la para o hospital Santa Beatriz onde mais tarde confessou o delicto com synismo, perante o enfermeiro e sua esposa.

A creança foi baptisada, sendo paranympho o Sr. Eleutério de Moraes, tomando o nome de Manoel. Falleceu na madrugada do dia seguinte na casa do Sr. Alberto Neves a quem tinha sido entregue para crear”.

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A princípio, o título da matéria revela o extremo conservadorismo eclesiástico da construção do sentimento materno, o qual jamais pode ser transgredido. No entanto, é evidente que tal edificação está atrelada a questões sócio-culturais, já que em regiões onde o modelo católico não é popular, as ambições e frustrações da mãe são distintas e, portanto, desmistificadoras da conduta moral materna universal e necessária, proposta pela igreja católica na constituição da mulher ideal, ou seja, dócil, zelosa de sua cria, respeitadora do marido, companheira, pudica.

Posteriormente, o relato jornalístico aponta a ocorrência do fato no quintal em um estabelecimento denominado Hotel Brazil, quando a criança foi deixada a mercê das “prezas dos suínos e bicos de urubus”. Fica comprovado neste trecho que a tentativa de sensibilização do leitor através da possibilidade de morte da criança por meio voraz, ou seja, sendo devorada por animais, fortalece a postura do jornal e de seu respectivo jornalista, os quais “compactuam” à maneira cristã e procuram infamar a mãe. É neste parágrafo que o jornalista utiliza a expressão “infantecídio” e “manifesto abandono”. Imagino haver, àquela época, 1910, certa confusão referente a estas questões em virtude do término simbólico – pois sabemos que ainda ocorrem em demasia – da declaração de desdenho da genitora para com sua cria, pois há pouco tempo (século XVII e XVIII – Brasil Colonial) havia sido impedida a prática da “roda dos expostos”, quando a sociedade católica ocidental garantia a sobrevivência do enjeitado a partir da assistência infantil, com a proposta de, ao mesmo tempo, preservar a identidade moral da mãe.
Na mesma tomada, após a confissão da mãe, o jornal a qualifica como sínica. Ora, se houvesse, realmente, a existência do sentimento materno, porque TODAS as mães apresentam, em níveis distintos, depressão pós-parto? Nos casos extremos, ocorre radical asco da mãe para com o filho e o desfecho é sempre conturbado, demorado e necessita apoio emocional.
Outro fato curioso desta matéria jornalística refere-se à inexplicável troca de sexo da criança. No início do texto, esta é apresentada como sendo do sexo feminino, mas, ao final, é nomeada (o) Manoel.

Por fim, como importante aspecto de estudo social, é o fato de, em momento algum, o jornal ter citado o pai da criança. Quem é este indivíduo e sua responsabilidade perante o ser? A partir deste panorama, podemos imaginar e questionar quem foi Cecília Reckenzki, mãe, natural de Blumenau, Santa Catarina. Segundo o jornal, Cecília viajava de Florianópolis com destino a sua cidade natal e nas escadas do paquete Júpiter é que se suspeitou dela. Desse modo, temos o direito e ousadia de indagar qual a razão da mãe abandonar sua cria. Será que Cecília, empregada na capital, engravidou do patrão ou de seu filho e por isso, conseqüentemente, recebeu ordem de retorno a sua casa no interior? Será que extirpou o feto em razão do juízo austero de sua família blumenauense alemã conservadora? São várias as hipóteses. Em vista disso, devemos estar atentos a mensagem destinada à massa, pois todas, ou quase todas, estão atreladas aos distintos interesses que compelem o homem.

A leitura desta matéria me faz lembrar o brilhante romance de Fernando Vaz, “O Circo da Pátria”, o qual aponta a trajetória de uma moça do interior de São Paulo, doméstica, que se envolve com o filho do patrão. Contudo, ao ficar grávida, é expulsa pela família e obrigada ao aborto, o qual ocorre de maneira desprotegida, com ausência sanitária e higiênica. Após, passa a prostituir-se, perambula e acaba envolvida em questões relacionadas à prática circense. Entretanto, o que sensibiliza o leitor é a via percorrida pela personagem, sempre sujeita ao comportamento machista, empiriocriticista, comum aos estudos filosóficos do século XIX pelo alemão Richard Avenarius e pelo austríaco Ernst Mash, os quais negavam o valor da ciência, pois acreditavam na concepção da experiência como soma de impressões e sensações, as quais culminariam na verdade absoluta.

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